Investigações revelam que a cadeia produtiva da carne bovina no Brasil está conectada à grilagem de terras e violência contra povos indígenas.
Pecuária avança sobre territórios indígenas protegidos
Segundo a investigação “Os Invasores” do observatório De Olho nos Ruralistas, a expansão da pecuária na Amazônia brasileira está ligada a uma crescente ocupação ilegal de terras indígenas. O relatório aponta que um dos maiores exportadores de carne do Brasil realizou negócios com fazendas localizadas dentro da Terra Indígena (TI) Apyterewa, no Pará, uma das terras indígenas mais desmatadas do país.
A TI Apyterewa, oficialmente reconhecida e pertencente ao povo Parakanã desde 2007, tem sido alvo de ocupações ilegais impulsionadas pela exploração de animais. Estima-se que mais de 60 mil animais são criados ilegalmente na área, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará (Adepará).
Essas práticas ocorrem mesmo diante dos compromissos públicos assumidos por frigoríficos de não adquirir animais de áreas desmatadas ou de terras indígenas. No entanto, a estratégia de “triangulação de gado”, quando o animal é transferido de uma fazenda irregular para outra “legal” antes da venda, continua sendo utilizada para mascarar a origem dos rebanhos.
Grilagem em larga escala
O estudo do observatório De Olho nos Ruralistas revela que a situação da TI Apyterewa reflete um fenômeno nacional. Com base em dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), a organização identificou 1.692 sobreposições de fazendas em terras indígenas em todo o Brasil. Isso representa uma área de 1,18 milhão de hectares, equivalente ao território do Líbano.
A pesquisa revela ainda que:
- 95,5% dessas áreas estão em territórios indígenas que ainda aguardam demarcação oficial.
- 18,6% da área sobreposta está sendo utilizada para fins agropecuários.
- 55,6% são pastagens destinadas à pecuária,
- Entre 2008 e 2021, aproximadamente 46,9 mil hectares foram desmatados em áreas de sobreposição de fazendas em terras indígenas.
O avanço da agropecuária sobre territórios indígenas representa não apenas a destruição ambiental, mas também a intensificação de conflitos sociais e violações sistemáticas dos direitos dos povos originários, como aponta o relatório “Os invasores”.
Onde há pecuária em terra indígena, há conflito
De acordo com o levantamento de 2023 do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a presença ilegal de fazendas em terras indígenas não apenas impulsiona o desmatamento, como também intensifica a violência no campo, colocando em risco direto a vida das lideranças indígenas que resistem.
O documento classifica os conflitos em duas categorias: “Violências contra o Patrimônio”, com 1.276 casos registrados, e “Violência contra a Pessoa”, que somaram 411 ocorrências ao longo do ano. Ainda segundo o relatório, 208 indígenas foram assassinados em 2023, sendo os estados mais letais:
- Roraima: 47 assassinatos
- Mato Grosso do Sul: 43 assassinatos
- Amazonas: 36 assassinatos
Em 2024, a violência contra os povos indígenas persistiu, com o assassinato de Maria de Fátima Muniz de Andrade, conhecida como Nega Pataxó, durante um ataque armado no território Caramuru-Catarina Paraguassu, no município de Potiraguá, no sul da Bahia. A ação foi atribuída ao grupo ruralista autodenominado “Invasão Zero”, formado por cerca de 200 fazendeiros e apoiadores que, sem respaldo judicial, invadiram a área e abriram fogo contra a comunidade Pataxó Hã-Hã-Hãe.
Protocolos de Monitoramento de Fornecedores da Amazônia
Principalmente a partir da celebração, em 2010, do Termo de Ajustamento de Conduta entre o Ministério Público Federal e diversos frigoríficos que operam na região amazônica – conhecido como TAC da Carne –, muitas multinacionais da carne passaram a adotar medidas de rastreamento e sustentabilidade, mas esses mecanismos ainda são incapazes de fazer um monitoramento eficaz dos fornecedores indiretos.
Enquanto isso, o mercado internacional continua absorvendo a carne brasileira. Em 2024, o país exportou mais de US$ 12,8 bilhões em carne bovina, segundo dados da Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), grande parte para China, União Europeia e Oriente Médio.
Demarcar para proteger
A Constituição Federal de 1988 reconhece, no Artigo 231, os direitos originários dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, determinando que cabe à União demarcar, proteger e fazer respeitar esses territórios. Mas mais do que um dever legal, a demarcação das terras indígenas é reconhecida como fundamental para assegurar a autodeterminação, a autonomia e a proteção dos direitos dos povos indígenas, conforme estabelecido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Desde 2023, o governo federal homologou treze terras indígenas, incluindo Aldeia Velha (BA) e Cacique Fontoura (MT), após um período de seis anos sem novas homologações. Contudo, ainda existem 261 áreas tradicionalmente ocupadas que aguardam a conclusão de seus processos de demarcação, de acordo com o Instituto Socioambiental.
Proteção ambiental
A demarcação de terras é apontada pelo relatório “Governança florestal por povos indígenas e tribais”, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (Filac), como uma das formas mais eficazes de conter o avanço do desmatamento.
De acordo com o estudo, as taxas de desmatamento em florestas dentro de terras indígenas demarcadas no Brasil, foram 2,5 vezes menores do que fora dessas áreas.
Oposição da Bancada do Agronegócio
A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), conhecida como bancada do agronegócio, tem se posicionado contra a expansão das demarcações. Em janeiro de 2024, a FPA criticou uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu ações judiciais questionando a demarcação de terras indígenas no Paraná, alegando que o ministro Edson Fachin desconsiderou lei aprovada no ano anterior.
Além disso, após o STF declarar inconstitucional a tese do marco temporal, a bancada do agronegócio apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para estabelecer o marco temporal como critério para demarcações futuras.
Exploração animal
A cadeia produtiva da carne que está indiretamente ligada à invasão de terras indígenas, desmatamento e conflitos no campo também sustenta um sistema marcado pelo extremo sofrimento animal.
Na indústria da carne, milhões de animais são rotineiramente submetidos a práticas de mutilações sem anestesia, como o corte de bicos, rabos e dentes, e muitos passam praticamente a vida inteira em confinamentos que os impedem de realizar comportamentos naturais básicos, como se mover, abrir as asas ou socializar.
De acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a indústria pecuária brasileira mantém uma produção em larga escala. No 4º trimestre de 2024, foram mortos aproximadamente 9,48 milhões de bois, 14,23 milhões de porcos e 1,61 bilhão de frangos.
Essa escala massiva de produção, centrada no lucro, ignora a senciência dos animais, que são tratados como mercadoria. O modelo pecuário brasileiro está conectado com riscos e prejuízos às florestas, aos povos originários e aos próprios animais, todos frequentemente encarados como obstáculos ou recursos diante da expansão do agronegócio.
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