Organizações não governamentais de defesa dos animais, biólogos e veterinários assinaram uma carta aberta endereçada aos Ministros André Fufuca, do Esporte, e Marina Silva, do Meio Ambiente, sobre a Portaria MESP n. 125, que regulamenta modalidades esportivas que podem ser objeto de apostas, as chamadas bets. O documento pede a revogação do inciso VII, que trata de atividades envolvendo animais — como vaquejadas, rodeios e provas de velocidade com cães e cavalos.
Os signatários apontam que permitir que as práticas mencionadas na portaria — causadoras de intenso sofrimento aos animais — sejam objeto de apostas resultará na expansão destas atividades. A vaquejada, por exemplo, consiste na tentativa de submissão física e de imobilização do boi, e frequentemente causa fraturas em membros e quebra da cauda do animal. A prática já foi, inclusive, considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal por ferir a proibição de crueldade contra animais prevista na Constituição. As práticas de competições que envolvem perseguição, provocação seguida de monta agressiva, abuso das capacidades de correr ou tracionar, entre outras, além de potencial dano físico, são geradoras de sofrimento psicológico intenso para fins de diversão, que é a mais clássica definição de crueldade. Sendo assim, são práticas inconstitucionais no Brasil.
As provas de velocidade, que costumam utilizar cavalos ou cães, também levantam preocupações éticas – os danos físicos e psicológicos aos animais resultantes de submissão a competições são comprovados pela ciência. No caso de corridas, sabe-se que os cães da raça Galgo são comumente explorados, sendo submetidos a corridas excessivas e drogas injetáveis para fins de melhorar a performance. Tais ocorrências, além das frequentes condições precárias de alojamento, muitas vezes levam os chamados cães “de corrida” à morte.
A carta é baseada no artigo 225, inciso VII, da Constituição Federal; na Lei Federal Ambiental, 9605 de 1998 e na Resolução 1236, Art. 5o., Incisos XIV, XXII, XXIII, XXIV e XXV, do Conselho Federal de Medicina Veterinária.
“O esporte deve ser pautado pela ética, pela justiça e pelo respeito, princípios fundamentais para assegurar que competições sejam justas, seguras e saudáveis para todas as partes envolvidas. O Brasil preza por esse valor e inclusive instituiu a Comissão de Ética Setorial do Ministério do Esporte em 2023. A utilização de seres incapazes de expressar consentimento, especialmente tendo em vista a grande demanda física e emocional envolvida em atividades competitivas, vai contra os princípios éticos do esporte”, afirma Vanessa Garbini, vice-presidente de Relações Institucionais e Governamentais da Mercy For Animals no Brasil.
Para as entidades signatárias, o atual cenário político nacional favorável à proteção do meio ambiente não é compatível com o incentivo a atividades que causam lesões físicas e psicológicas a tantos seres cujos interesses mais fundamentais são desrespeitados.
“Incluir práticas que utilizam animais no mercado de apostas não apenas legitima o sofrimento imposto a eles, como também pode potencialmente aumentar a demanda por essas atividades, incentivando treinamentos ainda mais extremos. Trata-se de um retrocesso no compromisso com a proteção e o bem-estar animal, além de reforçar a visão equivocada de que a natureza e os animais existem para servir às necessidades humanas. Não podemos admitir que animais sejam submetidos a sofrimento e risco de vida por lucros financeiros ou entretenimento. Para que sejam consideradas éticas, as práticas esportivas devem se direcionar apenas a humanos, sendo motivo de celebração de conquistas e de suas realizações, sem que ocorram às custas de outros seres”, completa Garbini.
Confira a seguir o texto da carta na íntegra:
Vossas Excelências Ministro André Fufuca e Ministra Marina Silva,
Em nome das organizações abaixo assinadas, escrevemos-lhes respeitosamente sobre a Portaria MESP n. 125, publicada em 30 de Dezembro de 2024, que regulamenta as modalidades esportivas que podem ser objeto de apostas, e que, em seu inciso VII, elenca uma série de atividades que são costumeiramente desempenhadas com o uso de animais.
Esportes são atividades voluntariamente desempenhadas por humanos, os quais optam por praticá-las buscando os mais diversos fins. No caso dos atletas, o objetivo é o rendimento e a alta performance, motivos que os levam a aceitar submeter-se a treinamentos frequentemente árduos e demandantes. Os animais não compartilham dos mesmos fins almejados pelos humanos nas práticas desportivas, nem podem manifestar seu consentimento aos mesmos. Por isso, o movimento animalista ressalta que os animais não são – e nem devem ser considerados – atletas.
Esportes éticos não utilizam animais
O desporto deve ser profundamente pautado pela ética, exigindo que as práticas desportivas sejam desenvolvidas com justiça e respeito. Tratam-se de princípios fundamentais para assegurar que competições sejam justas, seguras e saudáveis para as partes diretamente envolvidas. O Brasil preza por esse valor, motivo pelo qual instituiu, por meio da Portaria MESP n. 35, de 20 de junho de 2023, a Comissão de Ética Setorial do Ministério do Esporte. A utilização de seres incapazes de expressar consentimento, especialmente tendo em vista a grande demanda física e emocional envolvida em atividades competitivas, vai de encontro aos princípios éticos do esporte.
Além disso, diversas das atividades nominalmente referidas na Portaria MESP n. 125 são sabidamente causadoras de intenso sofrimento aos animais. Citando apenas alguns exemplos, a Vaquejada implica na tentativa de submissão física do boi, frequentemente causando fraturas em membros e quebra da cauda do animal. A prática já foi, inclusive, considerada inconstitucional¹ pelo Supremo Tribunal Federal por ferir a proibição de crueldade contra animais prevista no artigo 225, inciso VII da Constituição. Apesar de ter sido posteriormente admitida como patrimônio cultural brasileiro, a atividade ainda segue sob discussão, exatamente pela explícita violência animal envolvida na prática. Neste mesmo ínterim incluem-se as Provas de Rodeios, Provas de Laço, Apartação, Time de Curral.
Outro exemplo de atividade citada pela Portaria são as Provas de Velocidade, que costumeiramente utilizam cavalos ou cães, e também levanta sérias preocupações éticas. Estudos indicam que um número surpreendentemente alto de cavalos chamados “de corrida” lesiona-se gravemente e até morrem durante as competições e treinamentos, devido ao imenso estresse em seus corpos. Durante as últimas Olimpíadas, tal realidade foi revelada através da divulgação de um vídeo que mostra cenas de maus-tratos contra um cavalo por uma atleta (o fato levou, inclusive, a saída desta da competição).² Este caso foi uma evidência de que animais em esportes são sujeitos, nos bastidores, a agressões físicas e psicológicas mesmo por parte de seus treinadores, com o fim de obter melhores performances.
Tal qual as Provas de Velocidade, os Cinco Tambores, Seis Balizas e Três Tambores, entre outras citadas pela Portaria, exigem do animal altíssimo nível de resistência, obtida de forma involuntária através de treinamento rígido e frequentemente dolorosos. Novamente aqui fica clara a subjugação física e emocional do animal e a exigência de alta performance sem que o mesmo possa manifestar anuência ou expressar eventual extrapolação de seus limites.
Apostas não podem estimular o uso de animais em esportes
A regulamentação das apostas online, também conhecidas como “bets”, por meio da Lei n. 14.790 de 2023, combinada com as propagandas online e durante eventos esportivos, fizeram com que o número de brasileiros apostadores crescesse exponencialmente nos últimos anos. Segundo dados da pesquisa Datahub³, o Brasil foi um dos principais mercados em registros de
casas de apostas em 2024. A ampla disseminação das apostas já apresenta consequências econômicas e sociais, motivo pelo qual o tema está “na Ordem do dia do Congresso Nacional”.⁴
Em vista deste cenário, ao incluir práticas que exploram animais entre as autorizadas para serem objeto de apostas, a Portaria MESP n. 125 contribui para a expansão destas atividades – e, consequentemente, fomenta o crescimento de práticas que causam extremo sofrimento aos animais. O atual cenário político nacional favorável à proteção do meio-ambiente, incluindo a fauna, não se coaduna com o incentivo à expansão de atividades que causam lesões físicas e psicológicas a tantos seres sencientes incapazes de manifestar seus limites.
Considerações finais e pedido
Os Esportes têm um papel muito importante na cultura brasileira, representando união, superação e celebração. Para que assim continuem, devemos garantir que as atividades esportivas sejam exercidas de forma justa e livre, sendo fundamental que aqueles que optem por serem atletas não apenas tenham consciência das implicações físicas e emocionais, mas também possam manifestar seu desejo de participarem. Logo, para que haja ética no esporte, é essencial que atletas sejam seres humanos.
Práticas que submetem os animais à crueldade são proibidas pelo artigo 255 da Constituição Brasileira. Ao ressaltar que práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais e registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, não são consideradas cruéis, a Emenda Constitucional 96 acabou por reconhecer o sofrimento animal inerente a tais atividades. Não basta que uma norma escrita determine que determinado ato deixe de ser cruel quando assim de fato o é. Logo, o fato de terem sido considerados patrimônio imaterial cultural brasileiro pela Lei n. 13.364/2016 não remove o extremo sofrimento animal envolvido no Rodeio e na Vaquejada.
Animais não são atletas. Não compartilham do entendimento e valor humanos acerca do esporte, nem possuem capacidade de anuir com sua participação. Ainda assim, são subjugados a situações que os colocam nos limites de suas possibilidades físicas e emocionais, limites estes que, não raramente e pela falta de possibilidade de expressar ou anuir, são ultrapassados, levando ao seu óbito.
Não podemos admitir que mais animais sejam submetidos a tamanho sofrimento e risco de vida por lucros financeiros ou entretenimento. Para que sejam consideradas éticas, as práticas esportivas devem se direcionar apenas a humanos e à sua superação, sendo motivo de celebração de conquistas e de suas realizações, sem que estas ocorram às custas de outros seres.
Confiamos no compromisso do Governo Federal com políticas esportivas éticas e sustentáveis, e, por isso, pedimos e esperamos que o inciso VII da Portaria MESP n. 125 de 30 de Dezembro de 2024, que trata sobre esportes envolvendo animais, seja revogado.
Sinceramente,
Alexander Welker Biondo, Doutor em Medicina Veterinária, UFPR
Arthur Henrique de Pontes Regis, Observatório de Direitos Animais e Ecológicos (ODAE) Cristina Diniz, Diretora Executiva da Sinergia Animal no Brasil
Cristina Mendonça, Diretora Executiva da Mercy For Animals no Brasil
Fernando Schell Pereira, Diretor da Princípio Animal
Frank Alarcón, biólogo/filósofo, doutor em Bioética e Ética Aplicada
Giseli Cheim, ANAA – Associação Nacional de Advogados Animalistas
Juliana M. Ferreira, Diretora Executiva, Freeland-Brasil
Maribel de Souza Amengual, SOS Animais e Plantas
Mônica Buava, Presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira
Patrycia Sato, Presidente da Alianima
Renata Nitta, Head of Campaigns da Proteção Animal Mundial
Rogério Rammê, Doutor em Direito, Professor Universitário e Advogado Animalista Vania Plaza Nunes, Médica veterinária, Vice-Presidente do GRAD Brasil, e Diretora Técnica do Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal
Viviane Cabral, Relações Governamentais e Advocacy do Instituto AMPARA ANIMAL
¹ Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4.983/CE.
² Globo.com
³ Meiomensagem.com.br
⁴ Senado.gov.br