Alimentação como solução climática: ONGs entregam Carta à primeira-dama do Brasil durante a Climate Week

Durante a Climate Week em Nova York, evento que reúne grandes tomadores de decisão e representantes da sociedade civil para discutir estratégias de mitigação e adaptação à crise climática, a Mercy For Animals, junto de diversas organizações, deu um passo importante em direção à inclusão da pauta dos sistemas alimentares nas políticas climáticas brasileiras. Em um encontro especial no Summit of Future da ONU, a carta, redigida em conjunto pela Mercy For Animals (MFA), Humane Society International (HSI), e The Good Food Institute Brasil (GFI)l, foi entregue pessoalmente à primeira-dama do Brasil, Rosângela Lula da Silva (Janja), destacando a urgência de integrar os sistemas alimentares nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) do país, em conformidade com o Acordo de Paris.

O encontro contou com a presença de Thayana Oliveira (Gerente Sênior de Políticas Alimentares na HSl), Lana Weidgenant (Gerente Sênior de Políticas da ONU na Proveg), Amelia Linn (Diretora de Políticas Global na MFA) e Sebastian Osborn (Gerente Global de Políticas Públicas na MFA), representando as 31 organizações nacionais e internacionais signatárias da Carta  envolvidas nesse esforço coletivo. 

Por que sistemas alimentares importam?

Globalmente, os sistemas alimentares são responsáveis por cerca de um terço das emissões humanas de gases de efeito estufa (GEE), responsáveis pelo aquecimento global. No Brasil, esse impacto é ainda maior. De acordo com dados do SEEG/Observatório do Clima, os sistemas alimentares respondem por aproximadamente 74% das emissões nacionais de GEE, sendo a pecuária a responsável por grande parte disso. O desmatamento, associado principalmente à expansão da pecuária e do cultivo de monoculturas para alimentação de animais, contribui para a devastação de biomas essenciais como a Amazônia e o Cerrado.

As políticas que focam em mudanças nos sistemas alimentares são cruciais para mitigar a crise climática e oferecer um futuro sustentável. Reduzir a dependência de produtos de origem animal, diversificar as fontes de proteínas e realinhar incentivos econômicos para práticas mais sustentáveis de produção estão entre as soluções recomendadas pelo IPCC e por vários relatórios globais.

A Carta aos Ministros

A carta entregue à primeira-dama foi endereçada a três ministros do governo brasileiro – Marina Silva (Meio Ambiente), Luiz Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário) e Wellington Dias (Desenvolvimento Social) – e enfatiza que o Brasil poderá demonstrar liderança em um contexto mundial ao integrar os sistemas alimentares em suas metas climáticas. Ela destaca os compromissos assumidos pelo país na COP28, a liderança brasileira na Aliança dos Campeões para a Transformação dos Sistemas Alimentares, seu papel central nas negociações climáticas internacionais e como o país pode se tornar um exemplo global ao adotar políticas alimentares sustentáveis. 

Leia a íntegra da carta abaixo:

20 de setembro de 2024

Vossas Excelências Ministra Marina Silva, Ministro Luiz Paulo Teixeira e Ministro Wellington Dias,

Em nome das organizações abaixo assinadas, escrevemos-lhes respeitosamente sobre a extraordinária oportunidade para o Brasil aprofundar o seu papel de liderança climática, integrando sistemas alimentares – incluindo medidas tanto do lado da oferta quanto da demanda – na sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) e nos planos e nas políticas de implementação relacionados.

O mundo olhará para a liderança do Brasil pelo exemplo na integração dos sistemas alimentares à sua NDC.

Na COP28, o Brasil assinou duas declarações políticas importantes com relevância para os sistemas alimentares. Na Declaração da COP28 dos Emirados Árabes Unidos sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Ação Climática, o Brasil, juntamente com os outros 159 países signatários, concordou em buscar um “engajamento amplo, transparente e inclusivo… para integrar a agricultura e os sistemas alimentares” nas NDCs e em perseguir  o objetivo de maximizar “os benefícios climáticos e ambientais – ao mesmo tempo que contém e reduz os impactos nocivos – associados à agricultura e aos sistemas alimentares”, inclusive por meio da mudança para “abordagens de produção e consumo mais sustentáveis”. A Declaração da COP28 dos Emirados Árabes Unidos sobre Clima e Saúde, assinada pelo Brasil e 150 outros países, reconheceu os “benefícios para a saúde provenientes das reduções profundas, rápidas e sustentadas nas emissões de gases de efeito estufa, incluindo as reduções resultantes de… mudanças para dietas ​​sustentáveis saudáveis”, e seus signatários se comprometeram a levar a saúde em consideração no desenvolvimento de suas novas NDCs.

Parabenizamos o Brasil por assumir um papel de liderança na Aliança dos Campeões para a Transformação dos Sistemas Alimentares, atuando como co-presidente da Aliança. Ao aderir à Aliança, o Brasil se comprometeu a: 1) fortalecer as visões nacionais e os caminhos de transformação dos sistemas alimentares, 2) atualizar sua NDC e outros planos em conformidade com os caminhos dos sistemas alimentares, e 3) reportar anualmente o progresso em direção às metas assumidas. A Aliança, considerada uma “coalizão de alta ambição” em sistemas alimentares e clima, identificou dez áreas de intervenção prioritárias, incluindo:

  • Redução de emissões de gases de efeito estufa (GEE), inclusive por meio da promoção de mudanças alimentares;
  • Realinhamento de incentivos financeiros e de políticas públicas; e
  • Aceleração da inovação, inclusive por meio de investimentos em proteínas alternativas.

Não conseguiremos cumprir as metas de temperatura do Acordo de Paris sem reduzir significativamente as emissões dos sistemas alimentares globais.

Globalmente, os sistemas alimentares são responsáveis ​​por um terço das emissões de GEEs causadas pela humanidade. O sexto inventário de avaliação do IPCC confirma que “mesmo que as emissões de combustíveis fósseis fossem eliminadas imediatamente, as emissões dos sistemas alimentares por si só poriam em risco a consecução da meta de 1,5ºC e ameaçariam a meta de 2ºC”.

No Brasil, considerando as emissões provenientes do desmatamento e outras mudanças no uso da terra, os sistemas alimentares são responsáveis ​​por 74% das emissões domésticas de GEE. Do total de emissões no setor agrícola, a agricultura foi responsável por 20% e a pecuária por 80%. A Amazônia é o bioma que historicamente mais emite GEEs provenientes do desmatamento, principalmente em decorrência do avanço da pecuária sobre as florestas, que responde por 75% da perda da cobertura florestal. A Amazônia e o Cerrado, os dois maiores biomas do Brasil, respondem juntos por mais de 85% da área total desmatada do país.

Como as NDCs são o principal meio para alcançar as metas do Acordo de Paris, é essencial que incluam medidas relacionadas aos sistemas alimentares — tanto do lado da oferta quanto da demanda —, assim como as políticas e planos nos quais se baseiam, para estarem alinhadas com o Acordo de Paris. 

Oportunidades de mitigação

O IPCC afirma que, no âmbito dos sistemas alimentares, “as ações de mitigação precisam ir além dos produtores e fornecedores de alimentos para incorporar mudanças alimentares e padrões comportamentais dos consumidores” e observa que o potencial de mitigação do lado da demanda para os sistemas alimentares é semelhante ao do potencial de mitigação do lado da oferta. O Guia Alimentar da População Brasileira de 2014 observa que a “diminuição da demanda por alimentos de origem animal reduz notavelmente as emissões de gases de efeito estufa (responsáveis pelo aquecimento do planeta), o desmatamento decorrente da criação de novas áreas de pastagens e o uso intensivo de água”. Dentro da categoria de mudanças do lado da demanda, o IPCC concluiu que a transição para dietas à base de vegetais tem o maior potencial para mitigar as emissões provenientes da agricultura, silvicultura e outros usos do solo – até quase 8 GTCO2e/ano. A redução da perda e desperdício de alimentos (PDA), que constitui seis por cento das emissões antrópicas – atribuíveis principalmente à produção de produtos de origem animal – é outra área com significativo potencial de mitigação. Pesquisas mostram que a diversificação de proteínas por meio de avanços na agricultura, do desenvolvimento de proteínas alternativas análogas e do fomento às opções alimentares ricas em vegetais têm o potencial de prover 14 a 20 por cento da mitigação de emissões que o mundo necessita até 2050 para se manter abaixo de 1,5°C.

Alinhamento com os objetivos de adaptação do Acordo de Paris

O IPCC concluiu que “as medidas de adaptação do lado da oferta, por si só, não serão suficientes para alcançar de forma sustentável a segurança alimentar sob as mudanças climáticas”. No que diz respeito à alimentação, a produção de produtos de origem animal também resulta em pegadas ambientais relativamente mais elevadas, não apenas devido a maiores emissões de GEEs, mas também devido à extensão de outros impactos, como o uso de água, a eutrofização e a acidificação. Quanto a isso, a Comissão EAT-Lancet concluiu que são necessárias mudanças nos padrões alimentares para evitar que os limites planetários sejam rompidos, o que teria graves consequências para a humanidade. No que diz respeito à perda e desperdício de alimentos, o IPCC considera que “a redução do desperdício em todos os pontos ao longo da cadeia produtiva de alimentos é uma oportunidade significativa para melhorar as medidas de adaptação do lado da demanda”.

No Brasil, as mudanças climáticas já estão impactando severamente a produtividade agrícola. Isso ressalta a necessidade urgente de uma transição para sistemas sustentáveis ​​de produção e consumo de alimentos. Trata-se de um imperativo socioeconômico.

Oportunidades socioeconômicas para o Brasil

Os custos ocultos do sistema alimentar brasileiro são estimados em aproximadamente 500 bilhões de dólares anuais. Esses custos estão associados aos impactos ambientais, de saúde e de pobreza dos sistemas alimentares que não estão refletidos no preço de mercado dos alimentos atualmente. A transição para um sistema alimentar justo e sustentável no país tem o potencial de gerar uma economia de custos de 200 bilhões de dólares por ano, sendo 80 bilhões de dólares associados apenas a mudanças na alimentação, de acordo com a Comissão Econômica dos Sistemas Alimentares (FSEC, na sigla em inglês).

Existem muitos recursos para apoiar os países na incorporação de sistemas alimentares em suas NDCs, incluindo a ferramenta Food Forward NDCs, recentemente lançada pela WWF em parceria com a ClimateFocus. As organizações brasileiras signatárias desta carta colocam-se à disposição para fornecer informações adicionais ou apoio técnico ao Governo Brasileiro na criação de uma NDC ambiciosa e alinhada com o Acordo de Paris. Desde já, agradecemos a oportunidade de nos reunirmos com Vossas Excelências para discutirmos mais profundamente essas questões.

Esperamos ansiosamente pela liderança do Brasil na área de sistemas alimentares e clima no desenvolvimento das NDCs e nos encaminhamentos rumo à COP30.

Sinceramente,

ACT Promoção da Saúde

Alianima

Associação Alternativa Terrazul

Catrapovos Goiás

Cebrap Sustentabilidade

Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente – FBOMS

Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal

GASTROMOTIVA

Geração Vegana

Humane Society International

ICLEI Brasil

Instituto A Cidade Precisa de Você

Instituto AMSUR

Instituto Clima de Eleição

Instituto Comida do Amanhã

Instituto de Defesa de Consumidores (Idec)

Instituto de Direito Coletivo – IDC

Instituto Fronteiras do Desenvolvimento

Instituto Internacional para Sustentabilidade – IIS

Instituto Mapinguari

Instituto Nina Rosa-projetos por amor à vida 

Instituto Regenera

Mercy For Animals no Brasil

OIMC (Interdisciplinary Observatory on Climate Change)

Pé de Feijão 

ProVeg Brasil

Sea Shepherd Brasil

Sinergia Animal

Sociedade Vegetariana Brasileira

The Good Food Institute – Brasil

WWF Brasil

¹ Crippa, M., Solazzo, E., Guizzardi, D. et al (2021) Food systems are responsible for a third of global anthropogenic GHG emissions. Nat Food 2, 198–209 (2021). https://doi.org/10.1038/s43016-021-00225-9
² Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change, IPCC AR6 (2022), 12.4.3  IPCC, Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change, p. 1285, https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg3/downloads/report/IPCC_AR6_WGIII_FullReport.pdf
³ SEEG, Análise das emissões de gases de efeito estufa e suas implicações para as metas climáticas do Brasil, p.7,12,25,26, 2023. https://seeg.eco.br/wp-content/uploads/2024/02/SEEG11-RELATORIO-ANALITICO.pdf
⁴ Map Biomas Brasil, RAD 2023: MATOPIBA OVERTAKES THE AMAZON AND TAKES THE LEAD IN DEFORESTATION IN BRAZIL,  https://brasil.mapbiomas.org/en/2024/05/28/matopiba-passa-a-amazonia-e-assume-a-lideranca-do-desmatamento-no-brasil/
⁵ Climate Change 2022: Mitigation of Climate Change, IPCC (2022), 12.4.1, https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg3/downloads/report/IPCC_AR6_WGIII_FullReport.pdf
⁶ Guia Alimentar da População Brasileira, 2014, p. 31,  https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-brasil/publicacoes-para-promocao-a-saude/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view
Climate Change and Land, an IPCC Special Report on Climate Change, Desertification, Land Degradation, Sustainable Land Management, Food Security, and Greenhouse Gas Fluxes in Terrestrial Ecosystems, IPCC, fig. 5.12 (2019), https://www.ipcc.ch/srccl
⁸ J. Poore and T. Nemecek, “Reducing Food’s Environmental Impacts Through Producers and Consumers,” Science 360, no. 6392 (February 2019): 1–6, https://josephpoore.com/Science%20360%206392%20987%20-%20Accepted%20Manuscript.pdf
⁹ K. Jaglo et al., From Farm to Kitchen: The Environmental Impact of Food Waste (Washington, DC: U.S. Environmental Protection Agency Office of Research and Development, 2021), 11, https://www.epa.gov/system/files/documents/2021-11/from-farm-to-kitchen-the-environmental-impacts-of-u.s.-food-waste_508-tagged.pdf
¹⁰ Jonathan A. Foley et al., “Key determinants of global land-use projections,” Nature Climate Change 9, no. 12 (2019): 949-953, https://www.nature.com/articles/s41558-019-0591-9. A diversificação de proteínas refere-se a estratégias destinadas a promover uma variedade de fontes de proteínas nas cadeias de produção alimentar para melhorar a eficiência na gestão de recursos, a qualidade nutricional e a sustentabilidade. Essas medidas podem incluir o incentivo ao consumo de uma variedade de fontes de proteína, promovendo a inclusão de uma ampla gama de alimentos ricos em proteínas na dieta, como legumes, nozes, sementes e alternativas vegetais, juntamente com as proteínas animais tradicionais, e a promoção de tecnologias de proteínas alternativas.
¹¹ Climate Change and Land, an IPCC Special Report on Climate Change, Desertification, Land Degradation, Sustainable Land Management, Food Security, and Greenhouse Gas Fluxes in Terrestrial Ecosystems, IPCC, 5.3.4 (2019), https://www.ipcc.ch/srccl
¹² Poore and T. Nemecek, “Reducing Food’s Environmental Impacts Through Producers and Consumers,” Science 360, no. 6392 (February 2019): 1–6, https://josephpoore.com/Science%20360%206392%20987%20-%20Accepted%20Manuscript.pdf
¹³  W. Willett et al., Food in the Anthropocene: The EAT-Lancet Commission on Healthy Diets From Sustainable Food Systems, Lancet 393(10170):449, 473 (2019)
¹⁴ A Multi-Billion-Dollar Opportunity: Repurposing Agricultural Support to Transform Food Systems, FAO, UNDP, UNEP (2021), vii, https://www.fao.org/3/cb6562en/cb6562en.pdf
¹⁵ Ludmila Rattis et. al., NATURE CLIMATE CHANGE | VOL 11 | DECEMBER 2021 | 1098–1104 https://www.nature.com/articles/s41558-021-01214-3.epdf
¹⁶ Food Systems Economic Commission. Brazil’s Food System Transformation.  https://foodsystemeconomics.org/publication/brazils-food-system-transformation/